Oficina da Crônica

novembro 28, 2014

Bicho Urbano

Filed under: 2014.02 Novembro — literarea @ 3:04 pm

Já vi muitos bichos e paisagens diferentes ao caminhar pela Rua Almirante Alexandrino em Santa Teresa, nas cercanias da subida para o Mirante Dona Marta: cobra, macaco, tatu, tucano, caxinguelê. Nessas ocasiões, sempre tento tirar fotos com o celular. Outro dia fotografei uma cobra coral, que estava morta, é claro. Sou curiosa, não louca.

Hoje, quando voltava para casa de carro, vislumbrei um mamífero um tanto inusitado na paisagem urbana de Zona Sul: uma vaca. Ela, solitária, dividia tranquilamente a rua com os carros que passavam.

Inicialmente achei meio surreal, parei o carro para tirar foto. Mas ao voltar a dirigir me dei conta do perigo potencial. Uma vaca andando na rua poderia provocar um grande acidente de carro, mesmo que naquela região, por causa dos trilhos, fosse impossível dirigir em alta velocidade. Bastaria uma curva mais fechada para a vaca ir “pro brejo”, acabar com o carro e, pior, alguém se ferir gravemente.

Pensei logo em procurar socorro, mas para que órgão telefonar? O corpo de bombeiros, ali perto, foi o primeiro que cogitei, porém não sabia como acessar o número (não me dei conta de que se tratava do famoso “emergência” constante, creio, em todos os aparelhos). Lembrei-me de ter no celular um número da Prefeitura.

A esta altura me indagava se este seria um problema municipal, estadual ou federal. Então nada como começar pela instância mais próxima. A atendente deu-me o telefone do corpo de bombeiro (foi aí que percebi que já o tinha). Telefonei em seguida e falei para a atendente o que estava acontecendo: a cena inusitada. A atendente disse que não poderia fazer nada, que isso não era função daquela instituição, e sugeriu-me de levar a vaca para a calçada. Instrução valiosíssima…

Não tenho a menor ideia de como levar uma vaca para a calçada. Aliás, não tenho a menor ideia de como levar uma vaca não importa aonde. Aliás, que calçada? Ali não tinha calçada… Se eu vencesse todas estas dificuldades, teria então que passar o dia inteiro segurando uma vaca na calçada para evitar um acidente? Desliguei o telefone de forma impaciente.

A vaca continuou o seu trajeto como se passeasse num campo bucólico. Na descida para o Cosme Velho, entrou em um terreno, muito à vontade, para pastar. E eu, decidida a acompanhá-la (a fim de evitar riscos maiores), entediada pela espera de uma solução, continuei a tirar fotos.

Nesse instante passou um carro do corpo de bombeiro. Apesar de não conseguir pará-lo, procurei mostrar a vaca e, aos berros, mostrar que ela representava um perigo. Certamente os bombeiros tinham algo mais urgente para resolver ou talvez aquela, também, não fosse sua função. Não deram a menor importância.

A seguir, um motorista percebendo que eu estava de olho na vaca, perguntou-me se eu estava criando boi ali. E eu, defensora da coletividade, ainda tinha que aguentar esse tipo de gracinha. Depois dessa, fiquei deveras irritada, peguei o carro e fui para casa.

No caminho, logo avistei uma cabine da PM com uma pessoa dentro (momento raro, um policial e, ainda, na cabine). Estacionei o carro e fui falar com o policial, a vaca ainda estava bem perto. Expliquei-lhe toda a situação, os riscos, meus receios, e que eu já havia me comunicado com Prefeitura e corpo de bombeiro.

No fundo sou ingênua (ou, talvez, otimista), ao supor que ele procuraria solucionar o problema. Sua resposta, adivinhem? Aquela não era sua função.

Contive-me e, em uma última tentativa, sugeri: mas o senhor poderia telefonar para o corpo de bombeiros, apresentar-se (mencionei seu nome, que estava escrito no uniforme, e o número do batalhão pintado na viatura) e enfatizar a ocorrência.

Tentativa inócua. Hora de desistir, começava a desconfiar que chegaria atrasada no trabalho.

Contei esta história para amigos de Santa Teresa. E nos meses seguintes recebia frequentemente relatos a respeito de encontros com a vaca. Mas até agora, continua a dúvida, o que fazer ao se deparar com a vaca de Santa Teresa?

vaca

Adelaide

7 Comentários »

  1. História leve e saborosa que encerra uma crítica velada e bem feita à incompetência e ao emperramento burocrático que caracteriza algumas de nossas instituições.

    Comentário por Pietro Tortona — novembro 28, 2014 @ 5:57 pm | Responder

  2. História engraçada. Estranha, não sei se é uma crônica, mas gostei do causo. rs

    Rita

    Comentário por Rita — novembro 28, 2014 @ 8:26 pm | Responder

  3. Talvez pelos meus antecedentes no jornalismo, este é o gênero de crônica que prefiro, fatos vistos e vividos no cotidiano. E a sua tem até foto! Muito bom, apenas daria uma enxugada para enfatizar as passagens de humor e talvez alguma cena de diálogo com os burocratas,autoridades constituídas, coisa e tal, para destacar o absurdo.

    Comentário por Vidaviva — novembro 28, 2014 @ 8:35 pm | Responder

  4. Claro que é crônica! E muito boa por sinal! Só acho que a dúvida que continua no final, na verdade, é: e a vaca? foi pro brejo? rs

    Comentário por João Kruger — novembro 28, 2014 @ 9:21 pm | Responder

  5. A vaca foi pro brejo !!!!!
    Seu texto é maravilhoso.
    Um grito na multidão e que solução ?
    O descaso .
    Adorei sua história .
    Parabéns , feliz Natal e um 2015 incrível pra você .
    Só uma observação : espero que a vaca não tenha virado churrasco …
    Um forte abraço do Afonso ( amigo do Tono do Ave ) e do Tono do Ave , esteja onde estiver

    Comentário por Anônimo — novembro 30, 2014 @ 2:30 pm | Responder

  6. Gostei da crônica bem humorada da vida real! Parabéns!

    Comentário por norita — dezembro 1, 2014 @ 12:38 am | Responder

  7. Adelaide, seu texto retrata bem uma tragédia anunciada do cotidiano, pela qual ninguém é responsabilizado, exceto a própria vaca. O que se diz nesses casos é que o pobre animal, por uma fatalidade, estava no lugar errado na hora errada e ponto. Valeu o seu alerta, embora ainda não saibamos o que fazer com todas que andam circulando por aí.

    Adriel

    Comentário por Adriel Romanno — dezembro 1, 2014 @ 12:53 am | Responder


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